Deserdar filho ou pai negligente? Cônjuge fora do testamento? As novas regras de herança em debate no Congresso
Desde a Roma Antiga, o testamento é o principal e mais conhecido instrumento para representar a vontade de quem morreu e, claro, para definir o destino de uma herança — seja ela em dinheiro líquido ou em bens como imóveis, veículos ou participações em empresas.
No Brasil, porém, essa forma de planejamento sucessório ainda é relativamente pouco utilizada, em comparação com outros países, como os Estados Unidos.
Tabu com a morte, baixa renda, burocracia e limitações impostas pelas regras atuais são alguns empecilhos que afastam os brasileiros de fazer um testamento em vida.
No entanto, a proposta do novo Código Civil, em discussão no Congresso Nacional, prevê a flexibilização do instrumento — como a proposta de retirada de cônjuges e companheiros do rol de herdeiros necessários em heranças.
Além disso, o projeto pode criar a possibilidade de reserva de parte dos bens a um herdeiro considerado vulnerável. Por outro lado, pode facilitar também a retirada de um herdeiro do testamento em caso de abandono ou ofensa física ou psicólogica, por exemplo.
Para advogados e especialistas em direito patrimonial entrevistados pela BBC News Brasil, essas mudanças podem tornar o testamento ainda mais necessário para o planejamento sucessório dos brasileiros.
No entanto, inclusive nas regras atuais, o documento é quase sempre recomendável para evitar desentendimentos familiares e dificuldades burocráticas que podem transformar a passagem do patrimônio de um falecido num processo lento, que pode durar vários anos.
Entre 2007 e setembro de 2024, foram registrados pouco mais de 527 mil testamentos públicos em todo o Brasil, segundo a Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg/BR).
De acordo com Eduardo Tomasevicius Filho, professor do Departamento de Direito Civil da Universidade de São Paulo 1(USP), esses dados refletem, em parte, o próprio perfil de renda da população brasileira.
“Boa parte não tem carro, não tem casa, às vezes tem pouco dinheiro no banco — uma pequena poupança, (de) R$ 2 mil ou R$ 3 mil. Nesse caso, não é preciso nem inventário: é só pedir um alvará para o juiz liberar o dinheiro no banco”, explica.
Inventário é o procedimento legal obrigatório que registra e avalia todos os bens, direitos e dívidas de uma pessoa falecida, com o objetivo de realizar a partilha entre os herdeiros.
“Mas, para quem tem bens, o correto é fazer testamento, porque evita essa situação que vemos o tempo inteiro: assim que a pessoa morre, os filhos já estão se estapeando pelas coisas. Vale muito a pena um testamento, mas não é da nossa cultura, pois existe um tabu: se vou fazer um testamento, é sinal que vou morrer.”
Contudo, mesmo que timidamente, a procura tem aumentado por aqui.
Se há 18 anos eram apresentados em cartório cerca de 20 mil testamentos por ano, atualmente essa estatística já se aproxima dos 40 mil, de acordo com dados da Anoreg/BR.
Agora, a discussão do novo Código Civil pode aproximar ainda mais o assunto da população.
O Código Civil é um conjunto de leis que regula as relações privadas entre pessoas físicas e jurídicas, abrangendo direitos e deveres em diversas áreas como família, propriedade, contratos e sucessões.
O projeto de lei (PL) 4/2025, que atualiza o Código vigente, é de autoria do senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG) e foi protocolado em 31 de janeiro.
Ainda não foram definidas as comissões pelas quais deverá tramitar. A proposta teve origem em um anteprojeto discutido por juristas e presidida pelo ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Por que um testamento é tão complexo – e o que deve mudar?
Hoje em dia, a herança não segue, integralmente, a vontade de quem morreu — com testamento feito ou sem.
Pela regra atual, metade do patrimônio deve, obrigatoriamente, ser destinada aos chamados herdeiros necessários ou, no jargão do direito, os “legítimos”: os descendentes (como filhos e netos); se não houver descendentes, os ascendentes; e o cônjuge ou companheiro.
Essa fração é protegida por lei, e o testador, nome dado a quem faz um testamento, não pode mexer nela.
Já a outra metade pode ser distribuída livremente — por exemplo, para outros parentes, amigos, uma instituição de caridade ou até mesmo um animal de estimação. São esses 50% que são definidos no testamento.
Muitas vezes, a presença dos cônjuges como legítimos surge como uma surpresa no momento da partilha, por desconhecimento das regras.
Nos regimes de casamento ou união estável com comunhão de bens parcial, a parte sobrevivente tem direito à meação, ou seja, metade dos bens do falecido adquiridos a partir da união.
Já no regime de comunhão total, em que os bens adquiridos antes do casamento ou união são partilhados, o cônjuge viúvo permanece com 50% do patrimônio do cônjuge ao qual já tinha direito em vida.
Entretanto, isso não impede que ele possa ser indicado como herdeiro na outra metade do patrimônio disponível no testamento, dividindo essa parcela com descendentes ou ascendentes.
— BBC Brasil